Jonathas Nunes (*)
Nasci canhoto. Fui alfabetizado, escrevendo com a mão esquerda. Os primeiros chutes com bola de pano e de borracha, no Cansanção e na praça da Igreja, hoje Dr. Sebastião Martins, em Floriano, eram instintivamente com o pé esquerdo. A perna direita não tem muita força, nem jeito. Chute certeiro só com o pé esquerdo. Nas competições de queda de braço, apoiava logo o cotovelo esquerdo sobre a mesa ou peitoril, e até meninos mais altos e mais fortes acabavam perdendo pra mim. Já com a direita, era visível a “capitis diminutio”.
Rabo-de-saia da mãe, o hábito é reforçado com a preferência do pai pelo mano mais velho para recado, mensagens, ida à rua, ida ao Puçá, e até viagem a Teresina a serviço. Desde ainda bem pequeno, minha mãe era, de longe e de perto, a pessoa que mais me cativava.
Aos sete ou oito anos de idade, num daqueles fins de tarde, na varanda do Cansanção em Floriano, ela conversa com algumas pessoas de fora, e, lá pelas tantas, se sai com essa: Doutor Demerval me disse que o Jontinha (meu apelido familiar) “tem o coração dilatado”. Próximo a ela, ouvi bem a afirmação de minha mãe comigo. Guardei-a sem entender do assunto. A tristeza, em tom de lamento, da palavra materna, de alguma forma excita um par de neurônios na mente daquela criança pela vida afora.
Nas sessões de ginástica de maior esforço físico, na Escola Preparatória, na AMAN, e já Oficial a frente de tropa, invariavelmente, traziam à tona, a história do menino do “coração dilatado”. Já tenente em Amaralina, Salvador(BA), numa dessas lembranças, decidi, por precaução e também pra tirar a “prova dos nove”, ser chegada a hora de procurar um médico especialista em coração. Fí-lo com o justo receio de que em havendo algo mais grave, estaria com a carreira militar comprometida. Agendei a consulta. Consultório bem ali na avenida Sete de Setembro, Centro de Salvador. Explico ao médico o motivo de minha ida ao consultório; este ausculta e manda me deitar numa mesa; não me lembro se chegou a tirar radiografia. Passou algum tempo me auscultando, sem dizer palavra. Não perguntou nada que me chamasse atenção.
Ao final, a explanação feita me deixa ainda mais intrigado. Disse: “tenente Jonathas, até uns vinte anos atrás, a anomalia que você tem era considerada uma doença. Hoje, porém, este fato é considerado apenas uma anomalia congênita. O problema é o seguinte: as pessoas em geral imaginam que a gente nasce com o músculo cardíaco do lado esquerdo do peito; não é verdade. A posição do músculo cardíaco é rigorosamente no centro da caixa torácica; a extremidade inferior no entanto é ligeiramente voltada para a esquerda. Ao palpitar com mais intensidade, a vibração mais acentuada da parte inferior dá a sensação de que o coração como um todo fica do lado esquerdo. No seu caso, porém, o coração como um todo, e não apenas a extremidade inferior, é ligeiramente voltado para a esquerda, dando a impressão de que ele assim está, por efeito de alguma dilatação, o que não é verdade. Trata-se simplesmente de uma conformação genética”.
Após deixar o consultório, viajo no tempo, aos primeiros dias de internato no Seminário Menor em Teresina. Regime de clausura. Ao me ver escrevendo com a mão esquerda, o Prefeito Isidoro, Seminarista do último ano, vira-se pra mim em tom de admoestação, e diz: “…olhe… dizem que quem escreve com a mão esquerda tem pauta com o diabo”. Aos treze anos de idade, longe da família, só gente estranha em volta, sinto-me emocionalmente atordoado. E disse pra mim mesmo: É, desse jeito, vou ter que tentar aprender a escrever com a mão direita.
Na época, o internato funcionava como se cada seminarista fosse uma espécie de redoma de vidro em que a gente vê todo mundo e todo mundo vê a gente, mas sem se falar, a não ser na breve hora do recreio ao meio-dia e à noite, após o jantar, e ainda assim, em voz comedida. Pergunta, confusão, dúvida começava na gente, rodopiava dentro da gente e acabava na gente.
Deixar a mão esquerda e reaprender tudo com a direita, por pouco não me custou caro. Discuto o assunto demoradamente. Comigo mesmo. E assim, aos treze anos, parto para o desafio de tentar desenvolver o hemisfério esquerdo do cérebro, responsável pelo lado direito do corpo. Mal sabia eu que os circuitos neurais desses dois hemisférios se cruzam na altura das cordas vocálicas. Foi o que aconteceu. Mensagens com direções conflitantes se cruzando na altura da garganta, me põem em situação difícil na pronúncia de fonemas diversos.
O Centro Cultural Dom Joaquim, formado pelos seminaristas, se reunia às quintas feiras, a noite, na hora do recreio, no pátio interno do seminário. Conduzido pelo seminarista-prefeito, este escalava o orador para de improviso falar sobre algum assunto por ele indicado ou deixado a critério. Passei meses com visível dificuldade na pronúncia de certas palavras na Tribuna improvisada (uma pedra de maior porte). A princípio atribui o fato ao nervosismo da hora. Cheguei a imaginar que eu estava começando a ficar meio gago, e ainda assim, sem atinar a causa. A dificuldade em emitir um fonema, me leva a trocar uma palavra por outra, gerando sensação de dislalia.
Já adulto, fui tomando conhecimento de que ao tentar escrever com a mão direita, em oposição ao circuito neural da esquerda, mensagens oriundas dos dois hemisférios do cérebro, acabam “se embaralhando” na altura das cordas vocais. Anos após, soube que a dislalia, tal como um dos futuros pokémons do netinho Tutu, bem poderia ter evoluído para algo irreversível.
Uma vez mais, o “esforço interior solitário” do adolescente de treze anos estava conseguindo remover … “uma pedra no meio do caminho”. Duas décadas, após, me vejo matriculado no King´s College da University of London. Era um prédio antigo, de uns oito andares, situado ali na Strand, uns quinhentos metros da Trafalgar Square. Integro o Departamento de Matemática Aplicada, e, como estudante de Doutorado, disponho de um bureau no “room F”, sala onde ficavam outros onze estudantes nessa mesma situação.
Quem me apresentou pela primeira vez a esses novos colegas, foi o amigo brasileiro Marcos Duarte Maia, que eu conhecera ainda em Brasília e me ajudou muito em detalhes da ida para Londres. O Marcos já estava com dois anos no King´s quando lá cheguei.
Voltando ao assunto da mão esquerda, estava eu já com alguns meses na Universidade, trabalhando no meu bureau, no Room F, quando, certa feita, entram dois senhores querendo falar comigo. Ao me abordar, foram logo dizendo o seguinte: Mr Nunes, olhe, nós pertencemos ao Departamento de Psicologia da Universidade, e tomamos conhecimento que você tem habilidade para escrever com as duas mãos. Gostaríamos então de fazer a você algumas perguntas, sobre esse assunto:- 1) com qual mão comecei a escrever;-2) o que me fez escrever com a outra mão;-3) se ao longo da vida tive algum problema ou dificuldade para falar; -4) se eu escrevo com as duas mãos indistintamente; – 5) se a grafia das mãos é diferente uma da outra;- 6) se eu escrevo indistintamente com as duas mãos a mesma palavra, ao mesmo tempo. E a pergunta final: se escrevo ao mesmo tempo com as duas mãos palavras diferentes, o que é impossível.
A visita londrina de dois especialistas me leva de volta aos treze anos, no Internato de Teresina, e me dou conta de que por pura ironia do destino acabei, ainda criança, servindo de cobaia para uma experiência rara na espécie humana.
Anos depois, me vejo de volta a Teresina, já agora como Professor Titular na UFPI. Ao utilizar o quadro negro em sala de aula, muitas vezes o fazia com as duas mãos. Ficavam espantados com o fato inusitado de escrever igualmente com as duas mãos. Não demorou muito e observei que este fato estava me fazendo mais conhecido na UFPI do que ser o primeiro PhD no Centro de Ciências da Natureza. Antes de saberem meu nome, estava ficando conhecido como o professor que escreve indistintamente com as duas mãos. Muitos alunos e até professores me indagavam sobre esse fato. Volta e meia me vejo retornando à ladainha dos treze anos. Invariavelmente respondia: olhe, pelo amor de Deus, não vá querer me imitar, pois o risco de adquirir sequelas na fala é razoavelmente elevado.
Dito isto, dia seguinte, na sala de aula, reprise do filme: começava a escrever com a mão direita do lado esquerdo e terminava com a esquerda do lado direito. A turma endoidava.
(*) Ocupa a Cadeira 2 da Academia Piauiense de Letras.