“Parábolas do Reino de Deus” – de  FMM

Carlos Evandro M. Eulálio

Na obra “Ofício de Escrever”, do renomado Frei Beto, há um capítulo em que o autor afirma o seguinte: “Já não faço prefácios de livros. Nem apresentações.” E justifica: “[…] Deixar de lado meu trabalho literário para ler obra alheia fora de meu campo de interesse, fazia-me perder o fio da meada.” (BETO, FREI, 2017, p.11). De minha parte, eu confesso: apresentar a obra de um escritor como Chico Miguel, mesmo que o seu conteúdo esteja fora do meu campo de interesse, longe de causar-me desconforto, constitui um privilégio e ao mesmo tempo a oportunidade de muito aprender com sua versada e profícua história de vida literária.

Início a apresentação das Parábolas do Reino de Deus, falando um pouco do autor. Francisco Miguel de Moura nasceu no lugar Jenipapeiro, município de Picos, atual cidade Francisco Santos, no dia 16 de junho de 1933.  Conta hoje com 90 anos de idade. Literariamente conhecido por Chico Miguel, é poeta, ensaísta, cronista, romancista, jornalista e crítico literário. Formado em Letras pela Universidade Federal do Piauí, é pós-graduado na Universidade Federal da Bahia. Sua estreia como poeta aconteceu em 1966 com a obra Areias. Esse livro retornou ao leitor em primorosa 2ª edição pela Editora Life, São Paulo, 2021. Além dessa clássica obra literária, suas demais poesias estão reunidas na obra “Poesia (in) Completa”, edição de 2016 da Academia Piauiense de Letras, na coleção Centenário, sob o nº 56. Em prosa, entre outras obras, é autor do romance Os Estigmas. Como ensaísta e crítico literário escreveu “Literatura do Piauí, de Ovídio Saraiva aos nossos dias”, livro da maior importância para a historiografia literária piauiense. Atualmente, como funcionário aposentado do Banco do Brasil, diz que se dedica exclusivamente a ler e a escrever. É o 5º e atual ocupante da cadeira nº 8 da Academia Piauiense de Letras. Não poderia omitir nesta resumida biografia do autor que ele é casado com D. Maria Mécia Morais Moura.  

Meu primeiro contato com a produção literária de Chico Miguel deu-se por meio da obra Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho, quando eu cursava Letras na antiga Faculdade de Filosofia do Piauí, no início dos anos 1970. Considero um dos estudos mais completos de crítica literária sobre O. G. Rego.   

Hoje temos a oportunidade de conhecer uma outra vertente da criação literária do escritor Chico Miguel, ao trabalhar com o gênero ou discurso bíblico-religioso nas “Parábolas do Reino de Deus”. Como o próprio título anuncia, essa obra reúne as parábolas mais conhecidas de Jesus Cristo, aquelas que revelam verdades profundas e que tocaram a sensibilidade de Chico Miguel.

Ao narrar as Parábolas do Reino de Deus, Chico Miguel não se atém à simples tarefa de reescrevê-las, mas de interpretá-las do ponto de vista de alguém que vivencia com entusiasmo a palavra de Deus. Na apresentação do livro, ele expõe os motivos que o levaram a escrever a obra: “Quando comecei a reescrever ‘Parábolas do Reino de Deus’, contadas por Jesus Cristo, sem afastar-me do conteúdo que foi escrito originalmente pelos evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João, disse comigo mesmo que gostaria de fazer um trabalho que me agradasse, mas desejando, ardentemente, em primeiro lugar agradar a Deus” (MOURA, 2023, p.13).

Eis como Chico Miguel organiza o seu livro: nas páginas iniciais, escreve a biografia de Jesus em duas partes. Na primeira, fundamentado nos escritos dos evangelistas e numa vasta bibliografia, apresenta-nos o Cristo educador, na figura do mestre dos mestres que, aos 12 anos, já era muito admirado, “até causando espanto àqueles que interpretavam os textos sagrados, ali repetidos por Jesus.” Na segunda parte, intitulada “Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro”, o autor descreve o perfil de Jesus Cristo, a partir de suas ações, comportamentos e propostas.

Após a descrição biográfica de Jesus Cristo, inicia-se a narração das parábolas. Para tanto, o poeta recorre à paráfrase, recurso definido pelos linguistas e teóricos da linguagem como reescrita de um texto sem distanciamento de seu conteúdo temático, sendo uma espécie de tradução dentro da própria língua. Conforme Samir Meserani, são conhecidos dois tipos de paráfrases que se diferenciam pela forma como o texto original é recondicionado. O primeiro é apenas reprodutivo, reescreve quase literalmente o texto base. O segundo, desenvolvido por Chico Miguel nas Parábolas do Reino de Deus, é aquele de natureza criativa, porque “ultrapassa os limites da simples reafirmação ou resumo do texto original”, indo além da transcrição literal. Essa ultrapassagem do texto original, sem afastar-se da ideia central, decorre da sua dimensão intertextual, que reforça a heterogeneidade do texto parafrástico. Nessa modalidade, a paráfrase remete a outro texto que passa a constituir um novo discurso. Aludindo a outros textos, deles se aproxima em extensão. Nas palavras de Affonso Romano de Sant’Anna: “falar de paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças” (Sant’Anna (1985, p.28). Esse entendimento indica que a paráfrase é um mecanismo dialógico com novos sentidos, sempre acrescentando algo ao que já existe. Daí, ao reescrever as Parábolas do Reino de Deus, Chico Miguel constrói um novo discurso que, para efetivar-se, exigiu de si um exercício exaustivo de criatividade e reflexão.

Na reescritura das “Parábolas do reino de Deus” fica evidente o propósito didático de Chico Miguel, ao interagir com o leitor, chamando-lhe a atenção para que as fábulas “sejam lidas com cuidado, com amor e com fé” (MOURA, 2023, p.19). Nas várias passagens do livro, como na paráfrase da parábola “A figueira amaldiçoada”, o poeta nos dá esse testemunho de fé cristã, “como forma de merecer as graças de Deus.” Essa convicção é compartilhada com o leitor, como incentivo de afirmação dessa virtude teologal, com estas palavras: “Creio que a leitura deste trabalho sobre as ‘Parábolas do Reino de Deus’, reescritas para serem distribuídas aos que disponham reler aquilo que está na Bíblia, seja mais um incentivo de afirmação de nossa fé em Deus para sermos dignos de receber suas graças” (MOURA, 2023, p. 71).

Essa intenção didática de Chico Miguel é explícita no final de cada narrativa, quando ele esclarece o leitor sobre o sentido do texto que acabou de ler, além de contextualizá-lo em nosso tempo histórico e cultural. Para exemplificar, eis como reescreve o final da Parábola do Grão de Mostarda, uma das menores parábolas de Jesus que nos traz um grande ensinamento sobre a fé e o reino de Deus: “Como vimos, esta parábola é um claríssimo convite de Jesus aos homens para que sintam o espírito germinar (como a semente de mostarda), em verdade, beleza e bondade, nos seus corações, em busca da glória de Deus, e evitem entregar-se à ilusória potência do mal, aqui representada pelo tamanho das folhas da mostardeira (MOURA, 2023, p. 40). Esse método facilitador de leitura auxilia o leitor a compreender o aspecto simbólico ou alegórico de cada parábola. Este o grande mérito da obra Parábolas do Reino de Deus.   

Chico Miguel é um polígrafo da literatura piauiense. Se ele não vive dos ganhos da atividade literária, sempre teve a intenção de viver exclusivamente dela. Nos diversos escritos que põe em prática mostra domínio em tudo que escreve. O livro que hoje publica pela Entrelivros constitui excelente exercício de hermenêutica bíblica das Parábolas do Reino de Deus. Certamente, nos ajudará a compreender o que é essencial e profundo em suas passagens, com mais precisão e aplicabilidade à vida diária. Seus benefícios vão além do autoconhecimento, podendo estender-se também à convivência cristã em comunidade.   

                                  Capa do novo livro de Francisco Miguel de Moura/Reprodução

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* Carlos Evandro M. Eulálio, professor e crítico literário. É membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, segundo ocupante da Cadeira 38, tendo como patrono o poeta popular João Francisco Ferry.

REFERÊNCIAS 

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990. 

BETO, Frei. Ofício de escrever. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.

 MESERANI, Samir. O intertexto escolar. 4.ed. São Paulo: Cortez, 1995.

MOURA, Francisco Miguel de. Parábolas do Reino de Deus. Teresina: Livraria Nova Aliança, 2023.

SANT´ANNA, A. F. Paródia, paráfrase & Cia. 3.ed. São Paulo: Ática, 1985.

“CAMINHO DOS VENTOS” – UM BELO ROMANCE

Francisco Miguel de Moura*

Acabo de ler “Caminho dos Ventos”, o mais novo romance de José Ribamar Garcia, que sai agora, pela Líteris Editora, Rio de Janeiro-RJ, 2022, do qual gostei muito e fiz muitas anotações que, infelizmente, não cabem neste pequeno artigo. Ribamar Garcia é piauiense de nascimento, mas muito cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde formou-se em Direito, e hoje está entre os melhores advogados do Brasil. Como escritor, iniciou escrevendo saborosas crônicas onde demonstra sua infância e personagem de sua vivência. Mas, nos livros seguintes, contos ou romances, se universaliza, assim é neste “Caminho dos Ventos” como em “Filhos da Mãe Gentil”. Digo isto pela observação, em leituras seguidas, que ele foi adquirindo um jeito muito pessoal, moderno, atualizado, de escrever mais ou menos à maneira que certamente adquiriu na vivência carioca. Nas suas crônicas já se note isto. No romance, também, faz um estilo sucinto de dizer muito com clareza e em frases bem apuradas. Eu, que venho acompanhando a vida e a obra deste notável escritor misto de piauiense e carioca, li de cabo a rabo, todo seu novo romance, e me vejo numa situação mais equilibrada de contestar os críticos que dizem que o romance está morrendo.

Não, o romance não está morrendo, prova é este que agora apresento, do escritor José Ribamar Garcia. “Caminho dos Ventos” é um romance perfeitamente legível por qualquer letrada e nele encontrará, pela clareza e concisão do texto, vida e paixão, dois sentimentos necessários a qualquer obra romanesca. “Caminho dos Ventos” tem como pano de fundo a Amazônia brasileira do tempo de ouro da borracha., com personagens vibrantes como Alberto Nasser e sua família, amigos como Luca Barros e filhos como o Jurandir e o Sebastião, assim como a mãe de seus filhos, a índia Jaciara, entre muitos outros viventes quais como benzedeiras e padres, mais políticos sem-vergonha como o Bernardo Sobral e outros. Sim, daqueles políticos que enriqueceram desonestamente, sendo causa da queda da riqueza da Amazônia, pois venderam a semente da seringueira por pouco mais ou nada, para o exterior, e empobreceram aos poucos uma região tão rica, trocando por outras plantas para produzir frutos inferiores, venderam o ouro ao exterior, porque não tiveram pulso para desenvolver como deviam o Brasil para os brasileiros. Políticos que proliferam lá ainda na região amazônica tanto quanto cá no Nordeste, daqueles que só pensam em enriquecer-se a si mesmo, suas famílias e seus apadrinhados, pouco importando o povo em nome de quem tanto falam.

Mas esta é a parte menor do romance, falando-se artisticamente, pois que na verdade, o romance que tem como pano de fundo a exploração da borracha na Amazônia, logo toma fôlego com o seu personagem principal Alberto Nasser e o seu valoroso trabalho de homem sério, vencendo as enormes adversidades do meio, e se torna um excelente pai de família e homem de ilibada conduta. Da mesma forma são a maioria dos personagens de “Caminho dos Ventos”, que vivem entre as cidades Marabá, Ouromonte (nome inventado pelo autor) e Letícia, com seu crescimento e seu declínio pelas causas já apontadas.

Os mais abalizados críticos literários dizem que há dois tipos de romances, os que procuram mostrar a realidade com predominância do panorama exterior, ou seja, a paisagem, a terra e a sociedade, e o romance de “personas” (os chamados romances psicológicos). Ribamar Garcia abarca as duas facetas: a linha de fundo da Amazônia e os fortes personagens já apontados, em meio a tantos outros que não se contam para a história romanesca, aqueles que são apenas figurantes, nome que se aplica aos de filmes que não têm papel preponderante na história. Deste ponto de vista, podemos considerar “Caminho dos Ventos”, como um romance completo.

No final, há uma parte romântica, ou seja, o reencontro de Jurandir, num momento decisivo de sua vida, com sua Marinete. Por isto e pela rica variedade da história, eu proponho que, se fosse visto pelas empresas de cinema e televisão, “Caminho dos Ventos” poderia ser veiculado por novelas e filmes. Mas isto é outra história, pois nossos meios de comunicação não têm apetite pelas coisas que edificam e enobrecem, mas dão asas às novelas de invenção triviais e perigosas para o bom caminho da educação social.

José Ribamar Garcia, espero que seu romance tenha a felicidade de encontrar ainda algum leitor de boa índole e apaixonado por boa leitura, visto que este mundão exagerado da internet, através dos chamados meios de comunicação social, as pessoas são encharcadas diariamente pela mídia perversa, onde mais do que quatro linhas ou cinco palavras são exageros para a leitura ou para o ouvido comum.

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*Francisco Miguel de Moura, poeta e crítico literário brasileiro.

Capa do romance “Caminho dos Ventos”

ARTIGO: Modernismo & Vanguarda

Imagens: APL

                                        Por Francisco Miguel de Moura*

Desde o primeiro ao último estudo do livro de Paulo Nunes, cujo título encima este trabalho, é um repositório de comentários sobre temas e livros que devem ser lidos, meditados, discutidos e, como ele próprio fez, comentados na rua, nas instituições literárias, no jornal, ou onde mais haja tempo e condição. Creio que é esta a razão do livro.

Antes de entrar nalguns detalhes, quero dizer que Paulo Nunes escreve bem, correntemente bem, coerentemente bem. Portanto, dá gosto lê-lo, mesmo que não o aprovemos em algum ponto, em algum ponto ou ponto vírgula. Seria elogio dizer que um professor escreve bem, sabe escrever? Talvez não, se com isto quiséssemos apenas referir à gramática. Mas nós falamos aqui de estilo. E aí já é literatura, crítica literária. M. Paulo Nunes é realmente um crítico de verdade, de peso, de confiança, desde quando se refere aos clássicos da nossa ou de outras literaturas até quando comenta os piauienses.

Dito o geral, agora passemos às miudezas.

Gostei de encontrar um capítulo de “Autores e Temas Piauienses”, o penúltimo do livro, com os seguintes artigos: “Lucídio Freitas”, “A Poesia Popular de João Ferry”, “Uma Página Esquecida de Da Costa e Silva”, “Ginásio Frei Henrique”, “Memória da Faculdade de Filosofia”, “Poetas Piauienses”, “História da Educação no Piauí”, “Clodoaldo Freitas”, “A Literatura Piauiense e a Crítica Nacional” e “Despedidas”. São 10 artigos que o absolvem da pecha de não tentar familiarizar-se com a juventude escritora de sua terra.

No sexto artigo da série, cita H. Dobal e Hardi Filho entre os poetas consagrados e, entre os novos, Carvalho Neto, Cinéas Santos, Graça Vilhena e Marleide Lins. Eu, apesar de não vir em nenhum dos grupos, considero um balanço razoável e uma crítica importante ao livro “Baião de Todos”, de cuja antologia participei com alguns poemas, por convite do editor. A falta de citação, “não importando em nenhum desapreço”, conforme referiu M. Paulo Nunes, claramente representa a escolha de gosto do crítico e sua independência, o que é, sem dúvida, louvável.

Com relação a outro artigo, “A Literatura Piauiense e a Crítica Nacional”, quando essa matéria saiu no jornal tive a oportunidade de referenciá-la, mas não fui bem entendido ou não me fiz entender, razão por que seria extemporâneo estender-me aqui, exceto que o considero uma grande peça crítica.

Já “Uma Página Esquecida de Da Costa e Silva” tem sabor todo especial. É através de M. Paulo Nunes que a Academia Piauiense de Letras toma conhecimento e adquire o texto do discurso de Da Costa e Silva ao assumir sua cadeira na “Casa de Lucídio Freitas“, em janeiro de 1923, no qual faz o elogio de seu patrono, o Pe. Leopoldo Damasceno Ferreira. Embora o escritor Cristino Castelo Branco houvesse escrito que o discurso de Da Costa e Silva tinha sido publicado na “Revista da Academia”, no ano seguinte, na verdade houve uma suposição da parte do informante, pois ali nem alhures a peça oratória foi encontrada. Por isto vinha causando espécie aos pesquisadores, historiadores e acadêmicos em geral. A crítica é também para essas descobertas, esses achados bibliográficos.

Na verdade, não sinto nenhuma melancolia em falar da literatura do Piauí, do Brasil ou de qualquer lugar. Na literatura, o que importa é a obra, como ela é (se boa, forte, vigorosa, segura, nova, inovadora, etc. etc.). Não importa o lugar onde ela foi produzida. Isto de chamar literatura daqui ou dali é apenas uma forma didática de arrumar umas coisas para distinguir outras. Literatura é literatura, é a obra bem escrita, criativa, transmissora de emoções, conhecimentos expressivos e qualidade linguística. Portanto, também boa para ser lida. Agora, para nós outros que não somos críticos alinhados ao estruturalismo, que somos críticos ainda considerados impressionistas – que eu teimo, porém, em denominar de expressionistas – penso que a vida do autor deve ter algum interesse porque ela se reflete inelutavelmente na obra. Aí a crítica se completa. É ler e sentir a obra, escolher e tentar decifrá-la, encaminhando o leitor para sua leitura produtiva. E como encaminhá-lo? Entregando-lhe alguns trechos considerados mais expressivos, indicando caminhos de leitura, ou seja, o texto. Primeiramente o texto, é claro. Mas também o contexto (dentre o qual a vida do autor é o mais importante). E só a integração texto-contexto pode ajudar o crítico a resolver como escreverá seu metatexto, seu “intertexto”, seu “intratexto”.  Registre-se que estas duas últimas palavras são novas na crítica.

Manoel Paulo Nunes faz interessante a crítica didática, em texto vivo, apaixonado, cheio de observações e notas (que podem ser biográficas ou não). Para mim, uma crítica expressionista.  Por isto mesmo desperta o gosto da leitura. E não seria este o primeiro dever do crítico?

Por todas essas razões, “MODERNISMO & VANGUARDA”, de M. Paulo Nunes, é um livro que deveria estar em todas as bibliotecas do Estado e do país.

(*) Francisco Miguel de Moura, poeta e prosador, ocupa a Cadeira 8 da APL.Publicado originalmente no jornal “Meio Norte”, 3-11-2000.

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Paulo Nunes, autor de “Modernismo & Vanguarda”, na APL.

Um romance de Assis Brasil

Capa do romance “O Prestígio do Diabo”, edição da APL (2017).

Rogel Samuel  (*)
Em ”O prestígio do diabo” (São Paulo, Melhoramentos, 1988) Assis Brasil apresenta o panorama da vida da pequena classe média daquela época com maestria, pois o personagem Lázaro é escriturário, bem comportado, humilde, correto, calmo, preocupado com as aparências (“o que vão pensar?”, “começaram a olhar”, “podiam pensar que fosse um ladrão”), cuidadoso com a mãe e a irmã, tímido (nunca se declarou para Cacilda) e de repente, depois de algumas “quedas” (em que sentia que algo o empurrava ao chão) perde o emprego e começa a mudar. A alteração é lenta, quase imperceptível, mas vai assim até o seu surpreendente fim. O livro é muito bem construído, como todos os de Assis Brasil, e exibe a sociedade carioca das décadas de 60/70, o clima, o cotidiano, o centro da cidade, o subúrbio, no caráter humilde e bem comportado do jovem Lázaro (cujo nome é significativo). Sua mudança lenta e terrível, assim como foi a transformação moral da sociedade carioca. Há no livro um velado questionamento da luta do Bem contra o Mal, onde o “prestígio” do Mal vence.
O principal personagem, porém, é a sociedade carioca, a classe média pobre do Rio de Janeiro, a rua, a decadência das ruas, a vida, a corrupção do meio urbano. O romance é pessimista. Descreve com sutileza a loucura das grandes cidades. Abre a vida sem sentido, o aviltamento da moral brasileira, não só dos políticos ou da classe dominante, mas da sociedade como um todo, e principalmente a perda dos valores morais da classe média, o desvalorizar generalizado da vida privada, a sua favelização. O que está em jogo não é só vida pública, mas a contaminação do familiar, pois o mundo somos nós. O mestre Assis Brasil desse modo se faz herdeiro do romance machadiano.
(*) Escritor e crítico literário. Texto publicado originalmente em 29/11/21, na página do autor do Facebook. Uma nova edição da obra analisada saiu em 2017, através da Coleção Centenário, da APL.