A Fundação Biblioteca Nacional voltará a publicar a revista Poesia Sempre. Criada em 1993 pelo poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna, a revista retorna com o mesmo propósito de servir de espaço para a divulgação da poesia brasileira, de ontem e de hoje, revelar novos talentos, relembrar os esquecidos, apresentar aos leitores a poesia de outros países e promover o debate. Continuará sendo uma revista de poetas, de poesia, para leitores de poesia. O que virá de ensaios, de comentários e resenhas, quase sempre será fruto das reflexões dos próprios poetas.
Tivemos a oportunidade de conversar com o curador editorial das próximas edições, o poeta e tradutor Érico Nogueira. Entre poesia, ensaio e ficção, suas publicações incluem Poesia Bovina (2014), Contra um Bicho da Terra tão Pequeno (2018) e O Esmeril de Horácio (2020), entre outros. Doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, é atualmente professor de Língua e Literatura Latinas na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e em 2008 foi agraciado com o Prêmio Minhas Gerais de Literatura na categoria poesia.
Confira a entrevista:
1) A Revista Poesia Sempre foi criada com o mote de proporcionar espaço para a produção poética recente no Brasil e no mundo. Todavia, a poesia virou mercadoria que todo mundo tem para vender mas ninguém quer comprar. É preciso recuperar o espaço da poesia?
Esmiucemos a oração “recuperar o espaço da poesia”. Se ela significa tentar conferir à poesia o prestígio de outrora, e a centralidade, ou pelo menos a importância, que a poesia talvez tenha tido nos estudos e na formação das pessoas (e no próprio funcionamento da sociedade, vá lá), então creio tratar-se de empresa quixotesca e inexequível, porquanto a poesia – refiro-me à poesia culta, letrada ou letradíssima, e não a manifestações correlatadas como a poesia popular e a letra de canção –, a poesia, como ia dizendo, é artigo fora de catálogo, marginal, restrito a um grupo muito pequeno de pessoas, e sem interesse comercial nenhum. Agora, se “recuperar o espaço da poesia” significa, dentro de limites exíguos, e com um raio de alcance igualmente limitado, editar uma revista histórica como a Poesia Sempre segundo os mais altos padrões de publicações congêneres, assim contribuindo com a história hoje secreta e afim da das sociedades iniciáticas como é a da poesia culta, então digo e afirmo que isso é possível e necessário, sim; e é isso o que pretendo fazer.
2) Como foi que os leitores perderam o interesse pela poesia?
Os leitores cultos sempre foram muito poucos – pouquíssimos, na verdade – em toda a história do mundo. Esses nunca perderam o interesse pela poesia – sejam eles chineses, indianos, marroquinos ou brasileiros, por exemplo. Logo, suspeito que a pergunta se refira à pessoa média de outrora – o médico de província, a professora de liceu, os próprios bacharéis em direito –, que, nos seus momentos de ócio, costumavam ler poesia, às vezes mesmo em língua estrangeira. Bom – hoje está aí a internet, e mil outros passatempos que não havia antes, de modo que esses leitores de outrora, que chegavam mesmo a ler poesia séria como a de Drummond ou Jorge de Lima, estão hoje navegando nas redes, celular em punho, e deixaram a poesia em paz. Isso é ruim? Tenho cá minhas dúvidas… Por outro lado, a marcha da civilização moderna não segue a via – preponderante, não há negar – da imbecilização universal e irrestrita, e muita vez surpreende, vejam só: de modo que aqui e ali nas franjas estupidificantes das redes há grupos de discussão, blogues, gente jovem e não tão jovem discutindo e falando e interessadíssima em poesia, em verdadeira poesia. É esse o público potencial que procurarei atingir.
3) Há o julgamento preconceituoso de que poesia é perda de tempo. Mas, afinal, por que todo esse preconceito quando o assunto é poesia?
Não se trata bem de preconceito. Poesia é difícil, incomoda. É um exercício do intelecto, da sensibilidade, da memória a que poucos podem e querem se dedicar. Exige entrega, devoção – “Trabalha e pensa e lima e sofre e sua”, dizia o velho Bilac –, mas não paga nada, ou, quando paga, é sempre muito mal! Que muito admira que achem coisa de doido e perda de tempo, então, se a poesia te exige tudo, e não te dá nada palpável ou material em troca? É só trivial bom senso, comezinho bom senso. Mas vejam – as mais altas e abstrusas especulações da física e da matemática, digamos, e todo e qualquer empenho intelectual executado no mais alto nível, estão na mesma situação que a poesia: distantes do homem comum e dos ricaços estúpidos.
4) Quais são as perspectivas da poesia brasileira contemporânea? Podemos dizer que a poesia brasileira vive hoje um momento importante?
Sem dúvida nenhuma: a poesia culta hoje no Brasil – e eu gosto de frisar que é poesia culta, sendo a única que eu acompanho e a só que me interessa – vive um momento extraordinário, que em nada fica a dever aos anos quarenta e cinquenta do século passado, ou à efervescência romântica e, depois, parnasiana, no século XIX. Há poetas imensos em atividade, novos Drummonds e Cabrais e Cecílias, que seguramente hão de entrar para a história das letras nacionais. Não vou citar nomes aqui – eles serão revelados em momento oportuno, conforme as edições da Poesia Sempre sob minha curadoria forem sendo publicadas. Eis por que peço ao público interessado – exíguo, mas fiel – que fique atento às publicações.
5) Falar de tradução de poesia é algo bastante complexo, pois, para muitos, a tradução é tarefa impossível. Até que ponto a poesia é traduzível? Como você vê o problema? Como manter a qualidade do texto numa tradução?
Só um poeta, ou, ao menos, um técnico competente, que domine os recursos da língua em que traduz, e conheça bastante bem a língua, o poeta e o poema que traduz, será capaz de fazê-lo de modo minimamente satisfatório – o que implica e supõe, por sua vez, algum grau de recriação do texto original. Há muita teoria, muita discussão inteligente e salutar sobre o assunto, que não posso abordar ou sequer referir num espaço breve como este. Baste-me, pois, dizer, resumindo muito, que a tradução é possível sim, e pode enriquecer e fecundar a língua de chegada, na qual se traduz, e até mesmo, às vezes, a sua própria literatura. Isso tem acontecido, em português, no domínio específico da tradução dos clássicos latinos e gregos – e tem acontecido há séculos.
6) Alguns dizem que os ombros de Drummond e João Cabral de Melo Neto sustentam o mundo da poesia brasileira. A afirmação é pertinente? Os valores que presidem o nosso cânone precisam ser discutidos? Qual é o critério para a inclusão de uma obra no cânone literário?
Sim, a afirmação é pertinente. Contribuíram para isso, afora a qualidade intrínseca das obras de Drummond e Cabral, a atividade de críticos e professores universitários nas décadas de sessenta e setenta do século passado, quando a crítica, como se dizia então, “impressionista” das gerações anteriores foi substituída pela crítica, repitamos o jargão da época, “científica” dos recém-doutores e seus orientadores de tese, os quais seguiam mais ou menos de perto as teorias francesas então em voga. O que quero dizer é que a escolha, consciente ou não, isenta ou não, de Drummond e Cabral como objetos privilegiados de dissertações e teses universitárias, e a presença desses profissionais das letras nos jornais, nas estações de rádio e até na tevê, acabou por dar uma como chancela pública, uma consagração socialmente embasada, à obra desses dois poetas. Quanto aos valores que sustentam a eleição de Drummond e Cabral – possivelmente nesta ordem – como os mais importantes e significativos poetas brasileiros do século XX, não só podem e devem, como são e estão sendo discutidos, sem cessar. Um exemplo deve bastar para provar o meu ponto: a 2 de janeiro de 2000, a Folha de S. Paulo publicou uma enquete com críticos, poetas e professores universitários, acerca dos melhores poemas do século XX – https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/inde02012000.htm –; no mundo, ganhou “The Waste Land”, de T. S. Eliot; no Brasil, “A Máquina do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade. Ora, se a enquete fosse hoje, vinte anos depois, com entrevistados diferentes daqueles, mas com uma formação e uma capacidade parelhas, as respostas seriam as mesmas? Não há nenhuma mulher, nenhum negro naquela lista, por exemplo: o jornal publicaria, o público aceitaria esse resultado, hoje? São perguntas que ficam. De modo que, como vocês já entreveem, os critérios para a inclusão de um autor e sua obra no cânone não são, infelizmente, apenas poéticos, literários apenas – são também políticos, históricos, às vezes acidentais. Há que ter sorte também na vida, não basta trabalho não – já dizia o meu sábio avô.
7) Podemos afirmar que uma literatura confinada a gênero, etnia ou raça, por definição, restringe seu próprio escopo e campo de visão?
Ixe, tá aí uma questão espinhosa, que aliás não é minha especialidade: intersecções de literatura com política… Eu fujo de política como o diabo da cruz. Minha opinião pessoal, porém, sempre limitada e discutível, é que tentar fazer justiça política ou bem reparação social (devidas e necessárias, no seu âmbito específico) em literatura, ciência ou nas artes é expor-se ao risco de cometer injustiças artísticas, científicas e literárias. Quem cria não importa, no limite, não interessa quem executa – interessa o que, e como cria e executa, afinal. Mas este meu é voto vencido, a esta altura dos acontecimentos.
8) Como pensar o cânone no contexto do multiculturalismo? O multiculturalismo deve reconhecer a possibilidade do transculturalismo e dos valores comuns e universais?
O cânone a rigor explodiu. Há um revisionismo ferrenho por toda a parte, disseminado e difuso pelas cátedras universitárias, meios de comunicação, redes, um negócio ubíquo. Então… Deixem que lhes conte um causo. Ano passado, no meio do tédio de um lockdown inglês que parecia não ter fim, resolvi fazer um experimento social. Inventei a um grupo de amigos cultíssimos ter lido em um jornal italiano uma matéria preocupante sobre Dante Alighieri – de cuja morte se comemoram os setecentos anos, neste corrente de 2021 –, a qual dizia que pesquisadores haviam descoberto uma carta inédita, da qual se inferiam “maus pensamentos” de Dante (foi a expressão que usei) a respeito de umas pessoas de determinada etnia. Essa descoberta, continuava eu, originara uma petição, cujo intuito era tirar e excluir sumariamente a Dante do cânone universal, no qual ocupa, com a Divina Comédia, uma posição de destaque: Dante é o maior poeta moderno do ocidente, só isso, e não tem ninguém que se lhe compare não. Começou-se uma discussão encarniçada. Um defendia com todos os argumentos a exclusão da Comédia e Dante do cânone, “porque uma sociedade que não dá a todos os instrumentos necessários para ler uma obra como a sua não pode, paradoxalmente, mantê-la em cânone nenhum: e porque o mundo de hoje não tolera preconceito”. Eu dizia “mas são maus pensamentos, alguém pode sofrer represálias por ter maus pensamentos?”. Ele não me ouvia. Quando lhes revelei a invenção, todos riram, afinal: mas eu fiquei com um gosto amargo na boca. A única coisa universal, hoje, são as mercadorias e os linchamentos virtuais.
9) A herança clássica ainda se faz sentir na poesia contemporânea?
Sem sombra de dúvida. Grande poetas como o inglês Geoffrey Hill (1932-2016), o alemão Durs Grünbein (n. 1962) e o brasileiro Bruno Tolentino (1940-2007), por exemplo, podem dizer-se classicizantes ou filoclássicos, e além deles há vários outros mais jovens, no Brasil e no exterior. – E alguns poetas abertamente modernos, uns até com laivos de vanguardismo, bebem igualmente nos clássicos, dialogam, refutam, discordam dos clássicos. Para o poeta culto e inteligente, sempre cioso do seu ofício, os clássicos são incontornáveis.
10) Augusto Frederico Schmidt dizia que “a poesia é muito mais importante do que o petróleo”. Você concorda com tal afirmação? O mundo precisa mesmo dos poetas?
Trata-se de uma afirmação retórica. O funcionamento da sociedade, no que tem de mais básico e literalmente mecânico, não precisa da poesia, mas depende do petróleo. Interpreto, logo, a afirmação de Schmidt no sentido do bíblico “nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. No sentido de que o homem, como ser racional, não como mero conglomerado de células, necessita de um alimento condigno, apropriado à sua racionalidade, ao seu intelecto. A poesia, a filosofia, as artes, as ciências – tais são o seu alimento. O maior signo da decadência, hoje, portanto, é o rebaixamento da nutrição intelectual, em prol da materialidade imediata e acachapante. Vivemos tempos sombrios.
11) É verdade que a tradução, que força uma língua a dobrar-se acompanhando as curvas de um pensamento estrangeiro, é, mais ou menos, um meio de comunhão espiritual requintada entre as nações, como dizia Paulo Rónai?
Sim, eu diria que sim – o que a teoria de Schleiermacher sobre tradução, aliás, que Paulo Rónai, como germanófilo, terá decerto conhecido, corrobora sobejamente.
12) Por que as iluminações dos poetas, o visionarismo dos santos e dos heróis situam-se num patamar de importância significativamente maior para todos nós?
Porque, talvez, neles se mostra mais claramente o que o homem tem de inalienavelmente humano, de característica e essencialmente humano, e que lá no relato do Gênesis se descreve como a semelhança do homem com Deus. É paradoxal – e, pois, interessantíssimo: o homem só é aquilo que é por ser imagem de Deus, aquilo que tem de mais íntimo e particular é uma semelhança com o absolutamente Outro, com a sabedoria e o poder eternos. Bonito, não? – É com isso que nos espantamos, admirados, nos heróis, nos santos e nos poetas.
Entrevista feita por Daniel Fernandes (Gabinete, FBN)