‘Decamerão’ inspira contos de autores internacionais sobre pandemia

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Em plena pandemia, Julia decide fazer um tratamento estético em um spa aberto de forma clandestina. Prestes a completar 40 anos e em vias de ter um ataque de nervos, a moça não resiste à tentação de burlar o confinamento. No local, recebe uma sugestão inusitada: a melhor maneira de rejuvenescer a pele seria por meio de uma técnica hipotética que consiste em apagar parte da memória — afinal, as lembranças ruins tiram o viço do rosto. Ela topa o tratamento, e o peso das más notícias se vai. Mas, ao deixar o spa alegre como nunca, Julia não entende por que as ruas estão tão vazias, nem o motivo pelo qual as pessoas usam máscara no rosto e a julgam enquanto ostenta um sorriso que nada condiz com o entorno. Da alienação da personagem, a escritora canadense Mona Awad extrai uma narrativa de ironia cortante em Um Céu Azul Desses, um dos 29 contos da coletânea O Projeto Decamerão. O livro recém-­lançado no país junta um time bamba de escritores de todo o mundo para criar tramas cômicas, espantosas, melancólicas e até sobrenaturais inspiradas nestes estranhos tempos do coronavírus. Assinam os textos desde autores renomados, como a canadense Margaret Atwood, o irlandês Colm Tóibín e o moçambicano Mia Couto, até talentos que merecem atenção, caso do italiano Paolo Giordano e do brasileiro Julián Fuks.

Como entrega o título, o livro toma emprestada a ideia do clássico Decamerão. A obra do italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375) apresenta 100 novelas que servem como distração enquanto a peste negra assola Florença, em 1348. Refugiados no campo, os dez jovens narradores (sete mulheres e três homens) por vezes observam a tragédia por uma óptica satírica, e por outras abandonam a realidade da devastadora doença que assolava a cidade italiana para rir de anedotas frugais sobre a aristocracia e o clero, com ênfase nos prazeres carnais.

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Quando a Covid-19 obrigou o mundo a mudar sua rotina, a obra do século XIV cresceu em vendas, revelando-se um consolo apropriado na luta contra a “peste” atual (recomenda-se vivamente ao leitor de hoje, aliás, apreciar Boccaccio, um autor inesgotável). A transformação da obra em best-seller motivou o jornal americano The New York Times a encomendar contos na mesma linha a diversos autores. Eles a princípio resistiram, mas acabaram seduzidos pela ideia. É nessas horas, afinal, que a literatura e o humor revelam seu poder de tocar as pessoas.

Os contos do Projeto Decamerão comprovam que a possibilidade de rir e de se ver no espelho da ficção pode ser um santo remédio para expiar as dores do mundo. O americano John Wray narra a história de um espertalhão que, em Barcelona, aluga os próprios cachorros a quem quer furar o lockdown, já que o passeio com animais é permitido pelas autoridades espanholas. Tóibín escreve sobre um homem em quarentena com o namorado, que inveja a vida feliz de um popular casal gay nas redes sociais. Em Um Gentil Ladrão, Couto apresenta um idoso pobre de um bairro remoto que recebe a visita de um agente de saúde, mas, sem entender o motivo, acha que está sendo assaltado. Num registro mais pungente, o paulistano Fuks tece uma reflexão sobre o congelamento do tempo na pandemia.

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Mas é Margaret Atwood, a dama distópica de O Conto da Aia, quem dialoga com Boccaccio da maneira mais criativa. Em Griselda, a Impaciente, a autora bebe de uma das novelas mais conhecidas do Decamerão — adicionando-lhe, contudo, as cores feministas tão comuns em suas tramas. O italiano narra a trajetória de Griselda, a Paciente, uma mulher que supera todas as provações impostas por seu marido, um nobre que a tirou da pobreza. Margaret inventa uma irmã ­gêmea dela, batizada de Griselda, a Impaciente, que move uma vingança contra o cunhado. Não bastasse a inversão sarcástica, a autora ainda embala a trama em um contexto surreal no qual alienígenas chegam à Terra para ajudar a humanidade — e dão voz à versão empoderada da história de Griselda. As pandemias mudam, mas os dilemas continuam iguais.