(1956). Quarto e Atual Ocupante da Cadeira nº 10 da APL – Poeta e magistrado. Nasceu em Campo Maior, em 9 de abril de 1956. É graduado em Direito e Administração de Empresas. Exerceu os cargos de monitor postal (ECT) e de fiscal da Sunab. Tem intensa atividade cultural. Presidiu a União Brasileira de Escritores (UBE), seção do Piauí e o Conselho Editorial da Fundação Cultural Monsenhor Chaves.
(1956). Quarto e Atual Ocupante da Cadeira nº 10 da APL.
Nasceu em Campo Maior – PI a 09-04-1956. Juiz de Direito aposentado. Formado em Direito e em Administração de Empresas, ambos pela UFPI. Foi fiscal da extinta SUNAB. Filho de Miguel Arcângelo de Deus Carvalho e Rosália Maria de Mélo Carvalho. Casado com Fátima, com quem tem dois filhos: João Miguel e Elmara Cristina. Presidiu o Diretório Acadêmico 3 de Março, a União Brasileira de Escritores do Piauí (UBE/PI) e o Conselho Editorial da Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Foi membro do Conselho Editorial da UFPI. Poeta, contista, cronista, romancista e ensaísta.
Colaborador de vários jornais, revistas e sítios internéticos. Citado em vários livros e dicionários biográficos. Recebeu diversas honrarias, entre as quais a Comenda do Mérito Renascença do Piauí. Cidadão honorário de vários municípios. Membro de várias Academias de Letras, entre as quais a Piauiense, a Parnaibana, a do Vale do Longá, a Campomaiorense e a do Médio Parnaíba.
Autor, entre outros, dos livros Cromos de Campo Maior (1990 e 1995), Noturno de Oeiras (1994), Rosa dos Ventos Gerais (3ª edição, 2016), Sete Cidades – roteiro de um passeio poético e sentimental (2000), Parnaíba no Coração (2006), Lira dos Cinquentanos (2006), Noturno de Oeiras e outras evocações (2009), Bernardo de Carvalho – o Fundador de Bitorocara (2ª edição, 2016), Amar Amarante (2013), Retrato de minha mãe (2013), Confissões de um juiz (2014), Retrato de meu pai (2016) e Histórias de Évora (2017).
DISCURSO DE POSSE – APL (*)
Elmar Carvalho
Desde o início de minha adolescência, ao ler revista desta Academia, nutri o desejo de pertencer a este silogeu. No exemplar, além de várias matérias, havia discursos de posse e crítica literária. Jovem, interiorano e humilde, achei um desiderato de difícil realização. Prossegui em meus estudos e em minha labuta literária, dando tempo ao tempo, na espera das oportunidades que pudessem surgir. Não fiz desse desejo um cavalo de batalha nem uma obsessão. Trabalhei e perseverei, sem forçar barras e sem cometer insolências e rebeldias sem causa, e também sem histéricas e inconsequentes iconoclastias. Agora, os senhores abriram os portais da Academia para mim, e eu lhes sou muito grato por isso, e saberei ter a gratidão da amizade desinteressada e do sadio e assíduo companheirismo.
Vim para somar, através da salutar convivência, e não para dividir, mediante dissensões e polêmicas impregnadas de radicalismo e vaidade. De logo advirto que não tenho a pretensão de estar substituindo o poeta maior Hindemburgo Dobal Teixeira. Dobal chegou a tal altitude, que se tornou insubstituível. De certa forma, pelo nosso individualismo, pela nossa personalidade ímpar, pelas nossas idiossincrasias, pela gradação de nossos defeitos e qualidades, todos somos um pouco insubstituíveis, na medida em que não haverá outra pessoa igual a nós, na medida em que deixaremos um vestígio de saudade impregnado em alguma pessoa, que nos amou e nos compreendeu.
Por incrível que possa parecer, uma série de coincidências me liga a esta cadeira que passo a ocupar, conforme lhes revelarei. Aliás, há quem diga que não existem acasos, nem coincidências, que tudo acontece por alguma razão. Houve mesmo quem dissesse que o acaso é o nome que se dá aos momentos em que Deus passeia incógnito. Mas vamos a esses acasos e coincidências. Esclareço que essas coincidências são tantas, que serei forçado a citar-me a mim mesmo e a intertextualizar com os meus próprios textos. Sou campomaiorense. Dobal não o era, embora muitos pensem que fosse, em virtude dos belos poemas em que ele fez a louvação das louçanias de minha terra. De minha parte, embora de forma acanhada e canhestra, também tenho cantado o meu rincão, em cromos solares, álacres, e em elegias penumbrosas e melancólicas. Sei que o poeta, de quando em vez, pedia que o levassem a ver a paisagem deslumbrante dos vastos campos maiores, em que se desdobram os tapetes dos tabuleiros, com suas gramíneas e babugens, com as corcovas dos cupins, a tirar lições da placidez dos bois, que parecem ruminar o próprio tempo e o silêncio. Certamente, contemplava a beleza elegante e esbelta das carnaubeiras, com as suas palmas a lhe acenarem levemente, em discreto meneio, que mais parecia um tímido flerte. Sem dúvida via o garbo espinhento e insólito dos mandacarus, que não dão sombra nem encosto, mas somente beleza e lição de resistência às intempéries do meio. Causava-me admiração ver o poeta, minado pela doença que o atormentou nos últimos anos de sua vida, mas sempre ostentando um discreto sorriso, um aparente bom-humor, sem gestos ou palavras de revolta. Por sua ligação telúrica e atávica com Campo Maior, sugeri ao vereador Luiz Carlos Martins Alves, que lhe fosse outorgado o título de cidadão campomaiorense. Apresentei ao nobre parlamentar as justificativas para a concessão, e o certo é que o projeto foi acolhido pela Câmara Municipal. O professor M. Paulo Nunes, estilista primoroso, a quem muito devo pelo apoio e incentivo de sempre, um dos críticos mais lúcidos, eruditos e percucientes da Literatura Piauiense, afirma que as três principais vertentes da poesia de Dobal são a lírica, a elegíaca e a satírica, dando ênfase às duas primeiras. A essas três eu gostaria de acrescentar o seu acendrado telurismo, o sentimento marcante de sua terra e de sua gente, e ainda o seu viés épico. Paulo Nunes, o considera, com muita justiça, o príncipe dos poetas de nosso tempo e um dos maiores da língua portuguesa. Fui encarregado de lhe fazer a saudação, quando da entrega do título. Dessa peça, justamente encomiástica, julgo oportuno transcrever estes trechos:
Não raras vezes a poética dobalina se reveste do mais profundo sentimento lírico e elegíaco, mas de modo quase objetivo, se assim me posso exprimir, sem a presença ostensiva do seu eu, do subjetivismo de sua própria voz.
Quando o poeta pratica os versos satíricos, como em A Serra das Confusões, o faz de forma quase escancarada, embora sem grosserias gratuitas e vulgaridades. Pinça picantes flagrantes do cotidiano, em que a jocosidade do inesperado, do pitoresco ou do ridículo deflagra gostosas gargalhadas. É um poema extremamente difícil, embora aparentemente simples, pois o autor tem de ser hábil e criativo e conciso ao delinear essas verdadeiras caricaturas em versos, e ao trabalhar essas situações prosaicas e engraçadas do dia a dia.
Em seus versos telúricos perpassam a nossa paisagem natural e humana, física e sentimental, em versos contidos e concisos, mas sempre belamente construídos, mediante a melodia frasal e a originalidade das imagens e metáforas. Apesar de não haver derramamento emocional, todavia nos comovemos com a descrição verdadeiramente pictórica da paisagem.
Por último, mas com o mesmo destaque, falemos um pouco de seus poemas épicos El Matador e Leonardo. Vazados no estilo elevado e inconfundível de sempre, esses dois trabalhos são calcados na verdade histórica. Foram concebidos numa montagem contrapontística de textos versificados e textos historiográficos (em prosa). Em El Matador está pintada a sanha e a sede de sangue, a fúria feroz e assassina de um homem que não poupava nem mulheres e nem crianças inocentes, cuja violência genocida não encontra explicação e justificava nem mesmo pelos padrões de sua época. Esse formidável poema de Dobal é uma espécie de Guernica a vergastar o tenente-coronel João do Rêgo Castelo Branco. Ao contrário, em Leonardo – Leonardo de Nossa Senhora das Dores Castelo Branco – foi composto o canto de exaltação a um patriota devotado, a um herói que se tornou lenda, a um poeta inspirado, a um inventor idealista em busca, sem sucesso, do moto-contínuo, um Dom Quixote a combater os moinhos de vento dos sonhos que sonhava, numa linguagem repassada de ternura e admiração por esse que foi um dos maiores homens da história piauiense.
Acrescento agora, arrematando o meu sincero elogio a esse extraordinário vate, que tive a recente satisfação de ter os quatorze versos iniciais de meu poema Elegia a Campo Maior expostos, em bela placa de acrílico, no Complexo Cultural de Campo Maior, ao lado de seu insuperável poema Campo Maior. A temeridade desse gesto – de colocar um poeta menor ao lado de um mestre inexcedível – foi cometida pelo profícuo prefeito João Félix de Andrade Filho, talvez tão-somente para mostrar que os campomaiorense também cantam a sua terra.
Por cúmulo de aparente coincidência, o patrono de minha cadeira na Academia de Letras do Vale do Longá é o excelso poeta Celso Pinheiro, que foi o primeiro ocupante da cadeira que passo a ocupar neste sodalício. Para não me repetir, cito trecho de meu discurso de posse naquele areópago, em que fiz o merecido elogio desse grande bardo:
Celso Pinheiro (…) nasceu em Barras, no dia 24 de novembro de 1887. No dia em que faleceu, 29 de junho de 1950, o Piauí, já tão pobre e sofrido, perdia também, por cúmulo de trágica coincidência, o seu poeta maior, da Costa e Silva, se é que esses dois titãs das letras piauienses não se ombreavam em grandeza. A exemplo do Parnasianismo Brasileiro, a Escola Simbolista deveria também ter a sua trindade, em que a estrela de primeira grandeza e de fulgor extraordinário – Celso Pinheiro – brilharia ao lado de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. O poeta, ironicamente, em sua pobreza de metais, era chamado de milionário do verso, pela facilidade com que urdia os mais belos poemas e sonetos, nos quais eram vazados o seu delicado pessimismo e o seu suave lirismo, através de melodiosas palavras e de inusitadas e por vezes extravagantes imagens e metáforas. Simbolista sim, mas também um cultor da forma, percebendo-se em sua poesia uns leves laivos de saudável parnasianismo. A crítica o tem, merecidamente, em elevada conta. Bugyja Brito o alinha entre os maiores poetas do Brasil. Hardi Filho, que escreveu um livro sobre ele, considera-o entre os três principais aedos de sua predileção.
Como se todas essas coincidências não fossem o bastante, o segundo ocupante desta cadeira nº 10 foi meu mestre no Curso de Administração de Empresas – Campus Ministro Reis Velloso – UFPI, em Parnaíba. Trata-se do monsenhor Antônio Monteiro de Sampaio. Fui, para continuar seguindo as pegadas do acaso, seu sucessor na Academia Parnaibana de Letras. Quando tomei posse, assim me referi a esse esmerado tribuno, também compositor e poeta:
Foi sobretudo um extraordinário orador sacro, um dos maiores do Piauí, talvez o maior dentre os vivos, por ocasião de sua morte. Seu pensamento transformava-se em palavra falada com impressionante facilidade, sem nenhuma forma de obstrução. Sua voz melodiosa e de dicção perfeita, fluía com liberdade e naturalmente. Era considerado um belo tipo de homem. Seus gestos elegantes pareciam apascentar as palavras. Seu porte nobre, de postura altiva, mas sem arrogância e afetação, davam-lhe um ar de esmerado tribuno da Roma antiga. Quando no ardor da oratória, suas palavras pareciam reverberar, alimentadas pelo fulgor da inteligência e de uma cultura poderosas. Seu semblante parecia transfigurado, como se um raio sagrado o tocasse. Os seus discursos eram irretocáveis, o fundo e a forma entrelaçados com perfeição. O teor de suas peças era enriquecido por comparações esclarecedoras e por metáforas fulgurantes e elucidativas.
Talvez, agora, os amigos duvidem sobre que coincidência haveria a me ligar ao patrono desta cadeira, à qual me sinto tão vinculado. Licurgo José Henrique de Paiva, cuja carreira literária foi inicialmente tão auspiciosa, tão plena de esperança, foi depois gradativamente declinando até o seu trágico e melancólico crepúsculo, através de uma série de vicissitudes, em sua vida particular e profissional, sobretudo ocasionadas pela dipsomania, que frustrou todos os bons augúrios com que os astros lhe acenavam. Na derrocada final do sol negro da desgraça, terminou sendo enterrado numa sepultura por muitos considerada ignota, em lugar remoto do Piauí. Talvez algum viandante, ao passar por essa cova rasa, contrariando os versos do poeta Castro Alves, que pedia ao caminheiro, que não atirasse “o ramo do alecrim cheiroso” na sepultura do escravo, para que ele melhor dormisse em paz na solidão e para não “espantar o bando buliçoso das borboletas” que ali pousavam, talvez depositem algum punhado de flores na campa desse poeta piauiense, que tanto sofreu em sua vida malograda, quando poderia ter-se alcandorado aos mais elevados píncaros do serviço público e da arte literária. O acadêmico, advogado e valoroso pesquisador de nossa história Reginaldo Miranda, referindo-se à sepultura de Licurgo, conta-nos que o vate, do alpendre da casa-grande da fazenda Santo Antônio, em que se encontrava em busca de cura para a tuberculose que o consumia, apontando para um morro que havia em frente, pediu fosse sepultado no seu cume. O seu anfitrião lhe fez ver que não seria possível tal escalada fúnebre. Licurgo pediu então para ser enterrado à sombra de uma frondosa pitombeira que até pouco tempo existia. Reginaldo Miranda acrescenta que os moradores da região conhecem bem onde fica essa cova humilde onde repousa o notável luminar das letras piauienses. Alguns estudiosos de nossa literatura o consideram o pioneiro da Escola Romântica em nosso Estado, já que o seu livro Flores da Noite foi publicado em 1866. O acadêmico e historiador Wilson Carvalho Gonçalves, barrense como alguns de meus ancestrais paternos, que foi e é amigo de meu pai, e depois se tornou um amigo dileto deste neófito acadêmico, que muito me tem distinguido, com o seu apreço e a sua palavra de estímulo, tem feito mais pela história piauiense e pela memória de nossa Academia do que várias instituições e órgãos oficiais de cultura. Seu trabalho dificilmente poderia ser executado por uma só pessoa, por isso o considero uma legião ou mesmo uma instituição unipessoal. No prefácio da Antologia dos Poetas Piauienses, de sua autoria, tive o ensejo de dizer que os poetas Bocage e padre Antônio Tomás expressaram almejar o esquecimento dos pósteros, ao passo que os seus colegas Antônio Veras de Holanda e Alcides Freitas desejaram exatamente o oposto. Licurgo, sem o desejar, talvez, mergulhou por vários anos no mais completo ostracismo, no mais absoluto silêncio em torno de seu nome, quase como se jamais tivesse existido. Porém, aos poucos, o seu nome emergiu do silêncio e do olvido, graças aos acadêmicos e historiadores Clodoaldo Freitas e monsenhor Joaquim Chaves. Eis aí os meus outros coincidentes vínculos com a cadeira de que hoje tomo posse: Clodoaldo, escritor da melhor qualidade, erudito da melhor cepa, estilista dos mais escorreitos, conquanto sem afetação, é meu patrono na Academia Maçônica de Letras do Estado do Piauí. Ele, como se fora uma retribuição das leis cósmicas universais, foi revisto e estudado pela extraordinária historiadora Teresinha Queiroz, um dos maiores valores da historiografia social de nosso Estado, que lhe dedicou belos ensaios e contribuiu decisivamente para a publicação de alguns de seus livros. Padre Chaves, além de meu conterrâneo, foi meu eleitor em minhas investidas anteriores, entregando-me em mãos o seu voto, sem titubeios e sem hesitações. Como presidente do Conselho Editorial da operosa Fundação Municipal de Cultura, que leva o seu nome, tive a honra de contribuir, humildemente, para a publicação de sua obra, além de tê-lo entrevistado, em parceria com o poeta Domingos Bezerra, para a revista Cadernos de Teresina, quando ele só desejava o recolhimento de sua casa e o regaço da Igreja a que servia de forma abnegada. Talvez seja oportuno esta Academia empreender uma campanha para que os restos mortais do poeta Licurgo de Paiva passem a repousar no velho cemitério de Oeiras, sua terra natal, quiçá ao lado do poeta Nogueira Tapety, igualmente fustigado pelo frio da desgraça de que nos falava outro poeta. Aproveitando o embalo, e se não for pedir demais, talvez seja o momento de se trasladar para Amarante os despojos de Da Costa e Silva, já que ele, quando cantou sua terra, implorou em versos de incomparável maestria: “Terra para se amar com o grande amor que eu tenho! / Terra onde tive o berço e de onde espero ainda/ Sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho!” Em Amarante, o seu mausoléu-memorial seria visitado e reverenciado, em verdadeira peregrinação turístico-cultural.
Deixem-me, amigos meus, que fale agora um pouco de mim, sem cabotinismo, sem vaidade e sem empáfia, afinal esta noite, para todo o sempre, jamais se repetirá, e eu desejo que fique em suas lembranças um fragmento do homem que tenho procurado ser, e um pouco de minha mundividência.
Nasci na velha urbe, mas por volta de meus nove, dez anos fui morar na zona rural de Campo Maior. Acostumado com as luzes, o movimento e os costumes da cidade, abateu-se sobre mim uma enorme tristeza. Por essa razão, comecei a ler vorazmente, para driblar a minha tristeza, primeiro os volumes da pequena biblioteca de meu pai, depois os livros do Grupo Escolar Valdivino Tito, que eram remetidos por minha madrinha Mirozinha, prima de minha mãe, quando meu pai ia à cidade. Logo li todo esse acervo infanto-juvenil. A madrinha passou a enviar-me os livros de sua própria biblioteca e ainda outros a que ela tinha acesso. Li também os que meu pai conseguia por empréstimo e as revistas que ele comprava. Logo desabrochou em mim a vontade de escrever. Porém sempre tive a cautela e o pudor de ler e refletir muito mais do que tenho escrito. Li ainda, já na adolescência, por empréstimo, vários romances clássicos das bibliotecas das professoras Cristina Maria do Vale e Silva e Avelina Rosa, ex-secretárias da Educação – do Piauí e de Campo Maior, respectivamente. Nunca fui prolífico, nem prolixo, e com o passar dos anos cada vez mais escrevo menos, e já hoje pouco escrevo, embora tenha muita coisa em prosa que nunca publiquei. Algum dia, espero fazê-lo. Aos dezesseis anos de idade comecei a publicar pequenos textos em prosa no jornal A Luta, de Campo Maior. Diria que, como literato, sobretudo como poeta, tenho sido um eclético, e procurei apropriar-me do que mais me atraía nas diferentes escolas literárias. Jamais tive pretensão de ser um vanguardista em plena província, mas procurei absorver o que havia de melhor nos verdadeiros e nos autoproclamados vanguardistas do mundo afora, e eventualmente usei as lições que deles retirei, imprimindo em tudo as minhas idiossincrasias, experiências e impressão digital de meu espírito, porquanto nunca tive vocação para ser papel carbono ou clone de quem quer que fosse, por mais alto que esse alguém fosse. “O mito é o nada que é tudo”, proclamou Fernando Pessoa. Nunca tive mitos, porque mitos eu mesmo os criava e eu mesmo os destruía. Como afirmei num de meus poemas, “desmanchei com minhas mãos que os criara os deuses em que cria”. Nunca tive deuses de barro, porque só tenho um Deus, a quem oro e adoro. Mas também nunca desejei ser um iconoclasta, a sair destruindo as imagens que outros veneram. Afinal, não devemos destruir as crenças de ninguém, se não temos nada de melhor para lhes oferecer. Sigo o caminho que me coube percorrer, sem atropelar ninguém, evitando os encontrões, que apenas me atrasariam ou me contundiriam. Se nunca me arvorei de ativista da vanguarda, muito menos procurei a retaguarda, e sempre, dentro do possível, procurei manter-me atualizado, nutrindo-me do que achava mais palatável. Tenho procurado ler de tudo, sem preconceitos, os hodiernos e os antigos, sobretudo os clássicos de todas as épocas e de todos os gêneros. Ao falar em clássicos, mormente os greco-romanos, fatalmente me lembraria de um episódio quase anedótico, de que fomos protagonistas eu e o professor José de Ribamar Freitas, orador insuperável e erudito consumado. No primeiro dia de aula de sua disciplina, cheguei um pouco atrasado, exatamente no momento em que o mestre perguntava qual dos alunos sabia quem era Adamastor. A classe mergulhou em silêncio tumular, ante tão insólita pergunta. O silêncio só foi rompido quando respondi que era o gigante de Os Lusíadas. Recitei os versos em que Adamastor ameaçava de males piores do que a morte os bravos navegantes portugueses. O mestre ficou boquiaberto, e levemente contrafeito, porque eu quebrara o mote de sua peroração, com que procurava demonstrar que nos dias atuais já não se liam as grandes obras literárias, sobretudo as oriundas do classicismo. Obviamente, se o caso tivesse ocorrido hoje, todos os alunos levantariam as mãos, e diriam, em uníssono, que era o humorista Adamastor Pitaco. Quando presidi a União Brasileira de Escritores do Piauí – UBE-PI, encetei, com o apoio de meus companheiros, forte campanha para que o ensino de literatura piauiense fosse posto como obrigatório em dispositivo de nossa Constituição Estadual de 1989. Contei, nessa luta, com o respaldo do deputado Humberto Reis da Silveira, relator geral de nossa Carta Magna, que se tornou um prezado amigo. Lamento dizer neste instante, que esse dispositivo constitucional é praticamente uma letra morta, visto que nunca foi regulamentado, mas ao mesmo tempo tenho a satisfação de dizer que o acadêmico e jurista Celso Barros Coelho, orador inexcedível, escritor de estilo admirável e sempre de denso conteúdo, e um dos raros juristas do Piauí, está cuidando para que o artigo 226, na parte relativa à Literatura Piauiense, seja uma letra rutilante e repleta de vida. Na UBE-PI estreitei amizade com dois dos maiores literatos de nosso Estado, os imortais Francisco Miguel de Moura e Francisco Hardi Filho, aos quais aproveito para render minhas justas homenagens. Em junho de 1975 fui morar em Parnaíba, juntamente com meus pais e irmãos. Logo no começo de meus felizes anos parnaibanos, fiz amizade fraterna com o poeta Alcenor Candeira Filho, cuja amizade só tem feito aumentar ao longo desses mais de trinta anos, em razão do respeito e da admiração que temos um pelo outro, sem a mácula peçonhenta da inveja. Comecei a colaborar nos jornais Folha do Litoral e Norte do Piauí. Logo a seguir, ingressei no Movimento Social e Cultural Inovação, que editava o jornal de igual nome, que marcou época como um periódico valente, imparcial e insubmisso ao regime ditatorial da época. Foi o mais importante e consistente alternativo do Estado, considerando-se o longo período em que circulou e a qualidade intelectual de seus membros, e também se levando em conta o fato de ser ele informativo, formativo e cultural, e ainda promotor de eventos e atividades culturais. Alcenor também era ligado ao grupo do jornal Inovação, fundado por Reginaldo Costa e Franzé Ribeiro, e que tinha como baluarte e guru a figura impoluta de Canindé Correia, meu compadre e amigo sem jaça. O intelectual que mais tem se debruçado sobre o estudo de minha literatura é o escritor Francisco da Cunha e Silva Filho, mestre e doutor em Literatura Brasileira e professor universitário no Rio de Janeiro, cujo pai, escritor de mérito, foi membro desta casa de letras. Esse notável crítico e erudito, em vários ensaios, tem abordado com muita propriedade e argúcia aspectos relevantes de minha poesia. Também importa dizer que muitos membros desta Academia escreveram trabalhos de crítica sobre minha literatura, igualmente com muita maestria e pertinência, como Alcenor Candeira Filho, Teresinha Queiroz, M. Paulo Nunes, Assis Brasil, Hardi Filho, Celso Barros Coelho, Oton Lustosa, Afonso Ligório e talvez outros que eu possa ter involuntariamente esquecido. Como curiosidade, registro o fato de que os acadêmicos Oton Lustosa e William Palha Dias foram juízes da Comarca de Regeneração, terra natal do professor Paulo Nunes, da qual, o que muito me honra, sou o atual titular. Quando tomei posse de minha cadeira no Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, asseverei que se os ilustres confrades eram historiadores e geógrafos nos livros e na cátedra, eu o era na poesia, porque havia tratado de muitos fatos históricos, e porque havia cantado e louvado muitas paragens do Piauí. Tendo percorrido o nosso Estado do litoral a Cristalândia, tendo morado em várias cidades piauienses, em muitas tendo parentes e aderentes, considero-me um cosmopolita do cosmos piauiense. Arrematando esta parte do discurso, afirmo que fazer literatura foi sempre um ofício muito sério para mim, que me tem consumido muito de meu tempo, e nela tenho empregado muita dedicação e esforço, pois entendo, parafraseando alguém, que em arte se não for para fazer bem-feito é melhor não fazer. Acredito que a literatura deva emocionar e produzir beleza. Aliás, já tive oportunidade de dizer alhures: “Acredito que o belo seja um objetivo em si mesmo, ou seja, o belo é útil, e a sua utilidade é a sua própria beleza. Um pavão foi projetado para ser belo, assim como um urubu foi criado para ser um gari alado, e ambos são úteis e necessários: um pela sua beleza, o outro por ser um operário instintivo da limpeza. Agora, se um urubu, além da diligência de sua faxina diária, tivesse uma bela plumagem e um belo canto, creio que nenhum prejuízo haveria, assim como não existe nenhum prejuízo em que um poema possa ser belo e útil, e ele sempre será útil pelo simples fato de ser belo.”
Agora, vejo o homem tentando reproduzir o Big Bang, através de enorme geringonça, de 27 quilômetros de circunferência, um acelerador de partículas chamado LHC (sigla de Large Hadron Collider). E, no entanto, o homem nem sempre consegue controlar sequer as suas próprias explosões interiores, e muitas vezes, por causa de um simples desentendimento no trânsito, é capaz de matar o seu semelhante. E alguns, por medo ou por serem profetas do apocalipse, tentam impedir a criação desses pequeninos e artificiais bigs bangs, pois acham que eles poderiam criar a singularidade bizarra de um buraco negro, que haveria de devorar a própria Terra. Agora, vejo o homem, em voracidade avassaladora, consumindo quase todas as reservas e recursos naturais do planeta, e da noite para o dia transformar uma floresta em cinza, fumaça, carvão e deserto, através das insaciáveis carvoarias e madeireiras, que já assolam o nosso pobre Piauí. Essas lamentáveis derrubadas e queimadas, ao tempo em que dizimam os nossos ecossistemas, em que destroem verdadeiros santuários ecológicos, como a bela e ímpar Serra Vermelha, levam à destruição também a nossa fauna, dado que muitos animais ficam sem seu habitat e sem comida e água. Muitas espécies já estão em fase de extinção. O homem, que cria animais para abatê-los, poderia ao menos evitar torturá-los, ou, ao menos, maltratá-los o mínimo possível. Recordo-me de que certa vez, perto de um mercado, vi um magarefe divertindo-se a dar machadadas na cabeça de um tenro e cândido cordeiro. Ria ao vê-lo estremecer com os golpes. Gostaria que esse carneiro, símbolo da mansidão, que sequer berrou ou esperneou, a exemplo da jumenta de Balaão, tivesse perguntado àquele homem bruto sobre por que o torturava. Ainda hoje me arrependo de não ter interpelado aquele homem rude e ignaro, embora correndo o risco de ele voltar contra mim o seu machado cruel. Essa situação deplorável me faz lembrar de que quando um dos pombos retornou com o ramo verde da esperança todos na arca sorriram, porque era sinal de que o dilúvio cessara, e de que nova e promissora vida recomeçaria. Hoje temo que em breve já não mais haja ramos, nem folhas, nem flores; que a última árvore já não exista, como eu disse nestes versos apocalípticos:
A última árvore
o homem havia cortado
para fazer o esquife
em que seria enterrado.
Com a destruição das florestas, as vertentes e os olhos-d’água irão minguar, minguar, até desaparecer de uma vez por todas. Em 1940, no Colégio Diocesano, o meu pai ouviu o mestre Álvaro Ferreira, que presidiu esta Academia, dizer que se nenhuma providência fosse tomada o rio Parnaíba, então ainda caudaloso e navegável, desapareceria em meio século. Hoje estamos constatando que esse velho professor de Geografia tinha razão. Até parece que o planeta Terra é uma coisa viva em si mesma; que tudo faz parte de um todo perfeitamente integrado; que tudo forma uma cadeia composta de elos, que na verdade são círculos virtuosos interdependentes e que se retroalimentam; que a destruição de componentes leva à destruição de outros componentes, encadeadamente. A poluição e o desmatamento levam ao aquecimento global, e este ao derretimento das geleiras, que formam os mananciais de água. Destruídas as geleiras dos Andes, o Amazonas minguará, tornando-se um igarapé, até a extinção total. E a inteligência humana não nos dá a certeza de que nossa raça não será extinta. Ao contrário, é essa inteligência que está levando o nosso planeta à exaustão, com todo esse cortejo de mazelas estarrecedoras. Contudo, sou um otimista, e creio que o homem, a despeito de todo esse quadro catastrófico que se nos apresenta, há de encontrar novas saídas, através de novas invenções, de novas máquinas, de novas matrizes energéticas, não poluidoras. Enquanto Malthus pregava uma verdadeira hecatombe, ao dizer que a humanidade se reproduzia em progressão geométrica, ao passo que os alimentos aumentavam em progressão aritmética, a humanidade reinventou a agricultura, com a engenharia genética, com modernos equipamentos e tratores, com novos insumos, com novos manejos do solo. Portanto, creio que o homem, em sua inesgotável capacidade de superação e invenção, haverá de dar um final feliz a essa história, cujo epílogo se prenuncia trágico.
Seguindo as lições da maçonaria, tenho procurado desbastar a pedra bruta que teima em permanecer em mim, na difícil e laboriosa escalada em busca do aperfeiçoamento. É uma luta difícil, diária, cheia de avanços e recuos, prenhe de ascensões e de quedas, por terrenos muitas vezes lodosos, permeados pelas ciladas dos atoleiros. Todavia, devemos perseverar e orar e persistir sempre. Acredito, desde muito tempo, que iremos colher de acordo com o que houvermos plantado. Por misteriosa lei espiritual, que ainda não conhecemos plenamente, na continuação da vida, como quer que seja essa continuação, de que não temos notícia segura, haveremos de receber tratamento de acordo com as nossas ações e omissões neste estágio terráqueo da vida. Talvez haja, como a física mais moderna parece vislumbrar, sem certeza absoluta, neste mundo de incertezas e de dúvidas, outras dimensões. Na casa de meu Pai há muitas moradas, asseverou o Cristo. Hoje percebo, com muita nitidez, que a raiz de todos os vícios e pecados nasce do egoísmo, pois este sentimento, para a satisfação de seu detentor, leva a crimes como assassinato por dinheiro, assalto a mão armada, corrupção e estupro, porquanto o que interessa ao ególatra é a sua satisfação, não importando como o dinheiro, o objeto ou o prazer sexual foi obtido. Daí a necessidade de todos os dias podarmos as nossas asas, de todos os dias reprimirmos a nossa vontade e os nossos desejos indevidos. Bem por isso, para fustigar a ganância e o egoísmo, que é o seu pecado original, no poema “A um ganancioso morto”, escrevi estes versos:
Sempre na busca de mais,
sua medida do ter nunca enchia.
Buraco negro voraz,
incessantemente novas coisas absorvia.
Hoje, onde jaz,
de nada mais necessita.
Sua cova é o útero, assaz suficiente,
para o seu corpo decadente.
Quando estava prestes a tomar posse de meu cargo na magistratura do Estado do Piauí, assaltava-me a dúvida sobre se a justiça deveria preponderar sobre a bondade, ou se a bondade deveria sobrepor-se à justiça. Depois, cheguei à conclusão de que essa dúvida era um falso paradoxo, de que não havia dicotomia nenhuma, pois quem era bom teria que ser justo, e quem era justo forçosamente era bom. Em minha carreira, tenho buscado a essência, e não a aparência enganosa dos formalismos, a simplicidade do que é claro e é justo, e não as complicações de presunçosas teorias e doutrinas, tantas vezes eivadas de sofismas, com que muitas vezes tentam dissimular as decisões tortuosas e injustas. A perfeição da justiça não está contida no formalismo dos ritos nem nas empolações de certo linguajar quase incompreensível, mas na possível celeridade e na simplicidade do que é certo e justo, porque o que é justo se reveste sempre da mais cristalina simplicidade. A perfeição está na decisão sábia e justa, e não na liturgia dos ritos, quase hieráticos, e não na rutilância dos enunciados herméticos e sibilinos.
No meu percurso literário, tornei-me membro de várias academias de letras, institutos históricos e geográficos e conselhos editoriais, de sorte que tenho alguma experiência em associações e órgãos colegiados. Por isso acredito que saberei conviver harmonicamente com os membros desta augusta Casa de Lucídio Freitas, em que pontificam pessoas que se destacam pelo seu valor literário e cultural, em que avultam expoentes de diferentes atividades intelectuais; enfim, belas e poderosas cerebrações, como as que citei ao longo desta peroração, e como as que nomearei agora: Humberto Guimarães, Dagoberto Carvalho Júnior, Magno Pires, Nerina Castelo Branco, Jônathas Nunes, Alberto Silva, Benjamim do Rego Monteiro Neto, Fides Angélica, Heitor Castelo Branco, Herculano Moraes, João Gabriel Baptista, Júlio Romão, Altevir Alencar, Manfredi Cerqueira, Nelson Nery Costa, Nildomar da Silveira Soares, O. G. Rêgo de Carvalho, Paulo Freitas, Raimundo José Airemoraes Soares, Zózimo Tavares, Hugo Napoleão, Pedro da Silva Ribeiro, Álvaro Pacheco, Eustachio Portella Nunes Filho, João Paulo dos Reis Velloso e Ribamar Garcia. Aqui, encontro ainda a figura exponencial de Raimundo Nonato Monteiro de Santana, meu conterrâneo, bravo paladino das pelejas culturais, que vem editando mais livros que os órgãos oficiais de cultura. Foi ele um dos mais profícuos presidentes desta casa, em sua administração paradigmática.
Já ter ultrapassado meio século de vida e possuir pai e mãe vivos, com saúde e lúcidos, é uma dádiva muito grande. A vida que recebemos através de nossos pais é uma dádiva, porque a vida é o maior de todos os milagres. Ser casado com a mesma mulher há mais de 23 anos, nos dias de hoje, é outra dádiva e outro milagre. A dádiva e o milagre da compreensão e da tolerância recíprocas. Por isso, posso dizer agora – de meus pais Miguel e Rosário, e de minha mulher, Fátima – o que disse há 14 anos, quando fui empossado como membro da Academia Parnaibana de Letras: “De meus pais, herdei o que de melhor em mim existe, e os isento totalmente pelos meus defeitos. Aprendi com eles a considerar meu semelhante como efetivamente meu semelhante. Deles aprendi a humildade de fato humilde, e não aquela que se exalta pela ostentação, ou aquela outra que se degrada pela subserviência. Com meus pais aprendi a não me dividir contra mim mesmo, ao respeitar minha consciência. Porque a consciência, como disse alguém cujo nome não guardei, não impede que uma pessoa tire proveitos escusos, mas lhe frustra o prazer com as benesses ilegítimas e indevidas. (…) De minha mulher direi apenas que é verdadeiramente a amiga e companheira, que sempre esperei e desejei. E nela encontro ‘amparo e anteparo contra as borrascas do tempo’, para aproveitar um trecho de um dos meus poemas.” Aproveito para acrescentar, parafraseando o poeta, que carrego meus amigos, muitos aqui presentes, no embornal esquerdo do peito, e é por isso que ando um pouco capenga, e não tardarei muito a precisar de uma bengala, que agora voltou à moda.
Por último, quero deixar consignado que a marcha da humanidade é para frente e para cima, infinitamente, eternamente em ascensão para Deus, em contínuo aperfeiçoamento, e que um dia Deus nos receberá em seu regaço, puros e redimidos, como parte integrante de seu corpo místico. Creio que as quedas e as imperfeições, que as evoluções e os retrocessos, que os avanços e os recuos fazem parte de um plano divino e perfeito, como são divinos e perfeitos os giros alucinantes dos elétrons, as rotas luminosas dos cometas e as órbitas sincronizadas das esferas celestiais. E algum dia compreenderemos esse plano maravilhoso, quando estivermos com Deus e em Deus.
(*) Discurso de posse de José Elmar de Mélo Carvalho na cadeira nº 10 da Academia Piauiense de Letras, anteriormente ocupada pelo poeta H. Dobal, cuja solenidade ocorreu no dia 21 de novembro de 2008.
A CASA NO TEMPO
Celso Barros Coelho*
Ao iniciar a leitura de Rosa dos Ventos Gerais de Elmar Carvalho, para inebriar-me de sua poesia, e poder elaborar esse discurso de recepção do poeta, detive-me no poema A casa no Tempo.
Entre a casa no Tempo que Elmar Carvalho aí revive e a Casa em que ora ingressa, que é também do tempo, descubro uma relação simbólica, a explicar uma vocação literária hoje consagrada e que justificou seu ingresso nesta Academia de Letras.
Da casa no Tempo revelada no poema, diz o poeta:
“Vive em mim
Com os ruídos de passos misteriosos
Com suas portas e
Janelas que se abrem
E fecham por mãos invisíveis.”
Neste momento, ao ingressar em nosso convívio, o poeta que recebemos está ouvindo o ruído de passos misteriosos de seus antecessores, três vultos que dão brilho à Cadeira que ora lhe é transferida para a posse espiritual definitiva. São eles: Celso Pinheiro, Antônio Monteiro de Sampaio (Monsenhor) e Hindemburgo Dobal Teixeira. Pensando nessas figuras do passado e na casa de suas recordações, poderia afirmar o nosso poeta:
“Ai casa dolorosa
de infinitas recordações
do não conhecido e
do não vivido.”
O último dos antecessores, Hindemburgo Dobal, enche o ambiente do brilho de sua presença, e por isso mesmo nos provoca essas infinitas recordações, do que é conhecido e vivido, em sua poesia, tecida de angústia – parte da própria vida; embalada de sonho – elemento de sua própria alma e tocada de sofrimento – fonte inspiradora de sua poesia.
De Hindemburgo podemos dizer o que de Emille Verhaeren disse Stefan Zweig, nas emocionantes palavras escritas após sua trágica morte: “Era impossível ser pequeno depois de ter convivido com ele horas e horas.” Eram horas de admiração e entusiasmo, convertidos em lições de vida, a vida que brotava da fonte de sua inspiração. Foi bom que a Academia cuidasse de preencher a Cadeira de Hindemburgo com outro poeta, pois ela, assim, não perde a nobreza de sua tradição, que já vinha do primeiro ocupante, Celso Pinheiro.
Tendo ao lado dois poetas e um orador, a sucessão de que é titular Elmar Carvalho conserva o legado de uma família espiritual muito rica e que exige do sucessor o devotamento de sua vida e o cultivo permanente de sua arte.
O POETA ELMAR CARVALHO
Para conhecermos o poeta Elmar Carvalho, suas disponibilidades intelectuais para fazer poesia, não é preciso a leitura de seus versos. Basta lermos os numerosos depoimentos feitos em torno deles. O seu livro Lira dos Cinqüentanos traz um espaço reservado à fortuna crítica do poeta.
Aí se destacam as manifestações de Carlos Evandro M. Eulálio, de Alcenor Candeira Filho, Elio Ferreira, Israel José Nunes Correia, Evanildo de Deus, Rossana Carvalho e Silva Aguiar, Afonso Ligório Pires de Carvalho, Dílson Lages Monteiro, Oton Lustosa, Enéas Athanásio, Teresinha Queiroz, Cunha e Silva Filho e José de Ribamar Freitas.
Em Rosa dos Ventos Gerais há também manifestações críticas de M. Paulo Nunes, Assis Brasil e Hardi Filho, além de outros nomes consagrados.
Tão diferentes autores, cada um deles revelando facetas variadas da poesia de Elmar Carvalho, mostram a riqueza de sua produção poética, a versatilidade da composição, o esmero na construção rítmica dos poemas e, sobretudo, a excelência da mensagem que nos transmite o calor de sentimentos humanos de solidariedade, de amor à arte, de beleza e satisfação.
Para Carlos Evandro M. Eulálio, apresenta-se como “autor que soube, mercê de muito esforço, e trabalho disciplinado, ultrapassar os limites de seu tempo, adquirindo personalidade artística de mérito invulgar, ao construir uma poesia rica em erudição e intertextualidade”.
A erudição é o resultado das leituras que fazia, desde os dez anos de idade, segundo confessa em entrevista concedida a Teresinha Queiroz. Lia os antigos e os modernos, os prosadores e os poetas, sem preferências para esta ou aquela escola, pois o que lhe aprazia desvendar era o segredo da criação literária, para tornar-se um daqueles que espalham pelo mundo as mensagens espirituais que nos confortam e enriquecem nosso pensamento.
Dizia Coleridge, em sua Biografia Literária: “Não existiu jamais um grande poeta que, ao mesmo tempo, não fosse um grande filósofo”.
Elmar, como poeta, têm a consciência disso e daí dedicar sua atenção à metafísica, como também confessa, sem abandonar o mundo da física, o mundo da realidade de onde os escritores e os poetas extraem a seiva de suas criações literárias.
Na visão desse mundo que o artista se empenha em construir a seu modo e dele extrair as lições que transmitem ao seu semelhante, nessa visão descobre o enigma em que o seu ser espiritual se decompõe. Para ele esse enigma assim pode ser explicado:
ENIGMA
entre o som
o sono
o sonho
a sombra e a sobra
eu me decomponho
em escombros
em farpas e agulhas
escarpas e fagulhas
desfeito enfim
em fogos de artifício
feito estrelas de mim
esfinge autoantropofágica que
não se decifrou e que a si
mesma se devorou
A poesia também é exaltada e sentida na sua intertextualidade, com o que ela adquire força explicativa, como lembra Teresinha Queiroz ao focalizar a comunhão de sentimentos entre o poeta e o leitor. Diz ela na sua posição de leitora:
“O jogo especular entre o poeta e o leitor é feito de imagens ricas, poderosas, exemplares. Essa comunicabilidade pode ser conferida na temática do amor e da paixão, em que a simbiose autor-leitor revela-se, a partir do espelho da alma do poeta, em flagrantes quase cotidianos, como em “Encontro”, em “Musa Medusa” e em “Amor”.
A sua poesia não exprime um gosto de pensar, pois contém uma mensagem de vida. Sente-se, assim, responsável por uma criação que procura a essência do ser humano para interpretá-lo no seu destino e compreendê-lo em sua angústia. O poeta não foge do mundo com medo de seus conflitos. Enfrenta-os com o interesse de transformá-lo. Torna-se um poeta afirmativo, como bem expressa no poema Sou Poeta.
Também sou poeta
Alcides Pinto,
sou poeta.
E estou de mal com a vida
que nos acena
com miragens
que jamais irá cumprir.
Para ele a poesia não é só também um prazer intelectual, mas um compromisso social. Daí afirmar, em entrevista concedida à professora Maria de Socorro Magalhães: A minha cátedra e a minha tribuna são a poesia. Procurou a poesia onde ela poderia ser encontrada. Encontrou estímulo nos grandes poetas, ampliou sua visão do mundo na leitura dos pensadores e sentiu a firmeza de seus passos na crença nos valores do espírito.
Um dos estudiosos de sua obra, Cunha e Silva Filho, ligado à nossa Academia na figura do pai, Cunha e Silva, professor universitário no Rio de Janeiro, revela aspectos interessantes de sua obra. Destacamos, de um trabalho seu, o seguinte tópico, que bem define a poesia de Elmar Carvalho ao focalizar-lhe um dos ângulos – o poema e sua espacialidade. Observa ele:
“Uma das peculiaridades marcantes da poesia de Elmar Carvalho são os recursos buscados na configuração do espaço branco da página, expediente grafemático por ele empregado em muitos outros poemas que, desde cedo, dele fizeram um grande poeta atualizado, com o pé na modernidade e outro na grande tradição poética. Ainda hoje paga tributo ao Concretismo brasileiro em virtude desse apego à desintegração do vocábulo, à prática por vezes indiscursiva e ao uso amplo da espacialidade como elementos significantes e significativos do discurso poético.”
O discurso poético se desenvolve em variadas dimensões, à procura sempre de uma técnica adequada a cada tema, fazendo do signo lingüístico uma descoberta que se renova, para atingir aquela diversidade de perspectivas poéticas realçadas pelo mesmo crítico acima indicado, diversidade essa que vai do sacralizado ao profano, do místico-religioso às aporias ontológicas, do regionalismo ao universalismo.
O que aos leitores superficiais de sua poesia pode parecer a exteriorização de sentimentos de domínio e poder, de arrogância e exclusão, reflete, ao contrário, o desejo de atrair para a sua poesia a urdidura dos contrastes e dos conflitos, que faz parte da essência das coisas e da natureza dos homens. Sua Autobiografia Zodiacal é exemplo disso, como no-lo revelam as primeiras linhas dessa excelente composição:
“Sou do signo de
Carneiro
mas meu coração é um
Touro indomável
No meu sangue
corre a fúria de
Leão (…)
Não vemos aí uma exibição pessoal, uma exaltação de sua personalidade. É antes o reflexo da força criativa que domina o seu ser e que se espalha por outros versos, com a intensidade de sopro criador que, em alguns casos, é exaltação, noutros é ternura. Se, às vezes, procura atingir momentos de empatia, para justificar suas opções intelectuais, noutro se rende aos caprichos da simpatia com que compreende o desígnio das pessoas.
O seu realismo chega a ser forte, como no verso “A Ero Moça”, mas reveste-se de tonalidades líricas ao contemplar a mulher na Lagoa do Portinho. Esse contraste define a irresistível tensão de sua mensagem poética, rica, variada, de amplos domínios que confundem o regional e o universal e faz com que os seus versos guardem o segredo de aliar o encanto e o desencanto, o profano e o sagrado, o efêmero e o eterno, o físico e o metafísico, o real e o ideal.
O uso freqüente de figuras e imagens dá realce à sua linguagem, constitui a moldura dos seus versos, fazendo-nos lembrar o sentido clássico da hermenêutica e da semiologia, naquela distinção que nos apresenta Michelle Foucault, ao dizer que “a hermenêutica é o conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir seu sentido, enquanto semiologia é o conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem distinguir onde estão os signos, definir o que constitui os signos, conhecer seus liames e as leis de seu encadeamento”.
Há relação direta entre signo e memória, pois é o signo, ainda nas palavras de Foucault, que transforma a imaginação em memória voluntária, a atenção espontânea em reflexão, o instinto em conhecimento racional.
O ambiente espiritual do poeta é inserido na vertente dessa relação, pois anda sempre à procura de formas simbólicas para representar a realidade que o cerca ou traduzir os sentimentos que o dominam.
“O que se nota na atual geração de poetas, após a profunda experiência temático-formal do modernismo de 22 e o da 2ª fase, a partir de 1930, passando pela volta aos modelos formais do neoclassicismo, com o retorno aos poemas de forma fixa, com o pós-modernismo ou a chamada geração de 45, é uma acentuada preocupação com a renovação da palavra como instrumento de novas experimentações no universo poético, de que é exemplo este sugestivo livro de Elmar Carvalho, ao adotar em sua metalinguagem novas formas de expressão poética.”
Se atentarmos bem para o estilo poético dos antecessores da Cadeira hoje ocupada por Elmar Carvalho, veremos que em Celso Pinheiro a linguagem traz a preocupação de desvendar o grande mistério da arte. É o poeta preocupado com os elementos simbólicos de sua mensagem. Em H. Dobal pode-se identificar uma linguagem em busca da interpretação da natureza das coisas, realçando o que se prende não à essência do homem, mas ao sentido de sua existência. Quanto a Elmar Carvalho, a linguagem exalta a combinação de contrastes, para realçar as similitudes que tornam menos dramática a visão do mundo por ele concebido.
Essa linguagem está bem representada em dois poemas significativos, a mostrar que o poeta não se perde no torvelinho de suas emoções, mas que sabe guiar com firmeza os seus passos, pois acredita no seu destino e não desdenha de sua sorte.
Refiro-me aos poemas Auto-Apresentação e Eterno Retorno.
O primeiro destaca o perfil de quem, numa escala de afirmações, desce à interpretação do próprio ser, e transforma-o em ponto de apoio às suas próprias conquistas. Eis a parte final dessa Auto-Apresentação:
eu sou aquele
que aprendeu
a pecar para
ter a humildade
de não ter uma
virtude
eu sou aquele
que jogou roleta
russa com o tambor
cheio de balas e
apostou contra a
sorte
eu sou aquele
que lutou para
não ser
Já o poema Eterno Retorno é a valorização da memória. O eterno simbolismo que enriquece e explica a criação poética aí aparece exuberante nas suas combinações de imagens, no paralelismo de ritmos e na evocação do tempo que envolve o ser do poeta.
Transcrevo, para deleite dos ouvintes, apenas as duas primeiras quadras em que a memória é definida com elegância e precisão:
memória:
lâmina de desassossego
cornucópia insana insaciável
a jorrar o passado
que não morre nunca
sempre ressuscitado
no eterno regresso
a nós mesmos.
ó emoções redivivas
e ampliadas
das sensações
de nervos expostos
nas carnes pulsantes
de um passado
sempre lembrado.
O tempo aí é a imagem do que o poeta sente e pensa. Para ele é válida a reflexão escolástica: si non esset anima, non esset tempus. Se não fosse a alma não seria o tempo. O tempo e a memória são artistas consagrados; remodelam a realidade aos desejos do coração, diz o filósofo John Dewey. Só os poetas têm o dom dessa transformação, pois só eles sabem extrair das coisas visíveis o que é invisível. O tempo depende do espírito. É este que o projeta e o explica, como a imagem da eternidade.
Ao apresentar, em sessão solene da Academia Parnaibana de Letras o livro Lira dos Cinqüentanos, de Elmar Carvalho, mostrei o quanto admirava sua poesia. E lembrei o que Alcenor Candeira, nosso confrade, disse de sua poesia: “A poesia tem sido para Elmar Carvalho – poeta participante de seu tempo – um instrumento de conscientização.” Por isso, o crítico literário e romancista de renome nacional, Assis Brasil, nosso confrade aqui presente, declara a respeito, no prefácio que figura na antologia “Poemágico”:
“Elmar Carvalho (…) canta uníssono a consciência da vida e dos compromissos humanos. Canta as desigualdades sociais, numa forma (poética), como já acentuamos, muito mais contundente do que um simples discurso de comício ou uma catilinária oca de deputado. Elmar Carvalho é também um hábil poeta. Joga com as formas mais livres, sem modismos.”
Não é, pois, uma poesia que se revela na arte pela arte, mas na responsabilidade social de desenvolver a consciência de pensar a realidade nos seus problemas em relação aos quais a poesia não pode ser indiferente. É a arte a serviço da cultura, das transformações sociais, da defesa da dignidade humana. A arte que nasce do espírito e busca a liberdade.
Essa consciência de ser poeta é muito viva, como ele mesmo afirma:
“Sou poeta…
Não sei de física.
Não sei de metafísica.
Sei de metabolismo basal
E sei que o povo passa fome”.
O poeta não foge à realidade. Não a nega, em sua arte. Pelo contrário, vê através da arte o destino do povo, destino que não lhe é indiferente. A arte também para o poeta é conquista que vai fortalecer as suas convicções, abrindo-lhe horizontes bem claros para sentir o contraste e procurar o caminho da conciliação.
UMA CONFISSÃO
Ao receber um poeta na Academia Brasileira de Letras, Gustavo Barroso, que era historiador, dizia, a propósito de Olegário Mariano:
“Embriagado pelos vossos versos de ouro, afastei-me das praxes acadêmicas e não fiz resenha bibliográfica de vossa obra poética nem alinhei a data do vosso nascimento, do vosso primeiro dente, da vossa indefectível formatura e até de vossa eleição. Perdoai-me essa falta de academicismo na minha oração, tão distante dos moldes clássicos de Isócrates e Quintiliano, tão distante! É que prefiro contar das emoções que transmitis, da maneira como as nossas almas se compreenderam. Talvez tenha feito de menos; todavia a minha intenção era fazer de mais”.
Confesso que também essa é minha falta. Não falei da vida do nosso poeta, de sua produção em prosa. Omiti dados pessoais, deixei de lado o seu curriculum muito rico. Não mostrei os primeiros sinais de sua vocação literária, quando foi morar na zona rural de Campo Maior; não falei do menino que freqüentava assiduamente a biblioteca do Grupo Escolar Valdivino Tito, depois de passar pela pequena biblioteca do pai. Tudo isso daria um tom mais íntimo a esse discurso.
Preferi, porém, voltar-me para o poeta. Só para o poeta. Descrever os seus passos nas linhas de seus próprios versos, que falam do que foi e revelam o que será. Lembro-me novamente da casa no Tempo, que, nas divagações do poeta “é um navio fantasma que navega no tempo e na memória” e que aqui apartou, à espera de nova partida para novas aventuras e novas descobertas.
E como é bom sair do porto e se lançar aos mares, nesse navio iluminado pela presença dos ínclitos antecessores da Cadeira n°. 10.
Aqui o recebemos, nobre poeta, com a alegria que nos traz um mensageiro da poesia, com o calor de sua palavra e a disposição de lutar ao nosso lado.
Recebemos também um homem de fé, que tem sempre palavras de agradecimento pelos dons recebidos, como ele próprio diz, na apresentação do livro Rosa dos Ventos Gerais. Ali está escrito: “Louvarei sempre o Senhor pelas dádivas recebidas em forma de versos, e graças darei à poesia, que ontem e hoje enche os meus dias”.
Sua posse nesta Academia é também uma dádiva recebida: a dádiva de ter nascido poeta. E nós é que daremos graça à sua poesia, pois ela brilhará em nosso meio, com a mesma intensidade com que brilhou a dos antecessores.
Receba nossos aplausos e nosso abraço fraternal. Bem-vindo seja.
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Celso Barros Coelho. Discurso proferido na Academia Piauiense de Letras no dia 21 de novembro de 2008 em recepção ao poeta Elmar Carvalho, ocupante da cadeira nº 10.